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Acordei.
Notei que algo havia mudado, eu enxergava somente em preto e branco mas não me dei conta até o momento exato que abri as janelas de meu quarto.
Era uma quinta-feira comum, o despertador fizera seu trabalho e eu, até então, deveria me importar em manter o protocolo de banho-vestir-esquecer algo-sair-trabalhar. Geralmente ao acordar e deixar que a midríase[1] me enlouqueça, passo por situações vividas ainda nos sonhos. Ora sinto a espada ora sinto o calor nas mãos. Por vezes, enxergo sem enxergar - é cotidiano.
Nesta manhã em especial nada disso aconteceu. Permanecia enxergando em preto e branco mas ignorei. Levantei-me, segui à ducha, banhei-me e na hora de me arrumar, havia na cama um estranho objeto por sobre as minhas roupas. Era algo parecido com um camafeu de madrepérola, intensamente tonalizado ao dourado, algo que eu não tinha e que havia sido posto ali para que eu o visse. Tomei-o em mãos e abri. Vi-me a mim e mais alguém nele, uma bela dama, trajando roupas de meados do século XVI, cabelos louros presos no alto da cabeça, olhos claros que pela envelhecida da obra do camafeu não poderia distinguir cor. Espetacularmente, bela. E ao lado dela, eu.
Observei por tanto tempo o objeto que não me dei conta de que precisava continuar a me arrumar. Vesti minha calça, calcei minhas meias, sapato e então ouvi "- Tu não te recordas mesmo, não é, meu senhor?" - com a voz de uma mulher, bem atrás de mim, em meu quarto. Virei-me espantado, afinal os únicos que tem permissão de entrar em minha casa são Harpócrates e Vermelho, qualquer outra entidade precisa de permissão, por isso estou sempre seguro e mesmo assim, sinto seus cheiros quando estão por perto ou para aparecer. Simplesmente era ela, a dama do camafeu, vestida exatamente daquele jeito e olhando para mim com olhos tensos e suaves - ela tinha heterocromia, o olho esquerdo era verde e o direito azul - traço agora. Estava assentada em minha cadeira de madeira européia, pernas cruzadas e sua atenção dirigida exclusivamente a mim. Por sinal, aquela cadeira não era minha, deve ter surgido com ela, mas eu sabia que era minha em alguma época.
"- Ah, meu jovem senhor, não tema. Vim para dar-lhe um recado antigo que, ao notar o quanto se recorda de mim, receio ter também, esquecido-o. Enquanto éramos amantes, tivemos um filho. O doce Orpheo, lembra-te? Lembra-te também que o Nosso Senhor o quis logo cedo e o tomou de nós após aquele episódio febril que nem você pode controlar - o médico de maior prestígio do condado? Lembra-te ainda que prometera vingá-lo? É chegada a hora. Ele retornou e está com quem não deve, soube eu de alguns entes queridos e mesmo depois de todo este tempo, ele o quer como pai. Ouviu Daquela Senhora que nos visitava sempre à noite histórias a seu respeito. Ao que soube, ele ouviu as histórias somente da sua época de "Guerreiro", não contaram o porquê de ter abdicado."
Cada palavra dela me preenchia e queimava mais ainda meus olhos, comecei a enxergar mais em branco do que em preto, coisa que acontece somente quando estou de frente à uma entidade muito forte presencialmente. Instantaneamente eu a amei, novamente, e vi o momento do nosso primeiro encontro, dos nossos anos de namoro, noivados, casamento, a cópula, as promessas, o momento em que meu filho nascera e o momento em que eu o perdera. Lembro que foi esta a Terceira Vez que abdiquei e me tornei homem. As duas primeiras, uma fora contada. Não conseguia falar nada, apenas deixei que ela falasse.
"- Pois trata-se deste meu aviso, ele virá até você e o reconhecerá como pai. Mas não o pai que você foi e teria sido, mas como o pai que Ela contou que você deveria ser. Ele já virá marcado por Ela, com sangue aos olhos e desonrado. Ai de mim, mãe, vê-lo assim. Mas você, pai, sabe o que deve ser feito. Por ainda amá-lo não o deixaria desavisado, precisei do subterfúgio do camafeu para vir até você. Com a ajuda de seu nobre amigo Harpócrates, agradeça a ele por mim, depois. Onde estou agora é realmente bonito, graças a você. Tenho meus familiares comigo, compreendi diversas coisas, perdoei e nunca se esqueça de que nunca o culpei pelo que aconteceu. Faria tudo novamente e se há perdão aqui, eu devo pedí-lo pois fui fraca ao ver sua imponência e declinei. Se naquele momento eu soubesse já o que o senhor era, não teria temido e fugido. Portanto, perdoa-me".
Havia lágrimas em seus olhos e ela se levantou, veio em minha direção e beijou-me a boca. Não senti sua carne, apenas um frio e uma torrente de emoções. Ela pegou o camafeu de minhas mãos e automaticamente comecei a notar as cores novamente, menos nela, que permanecia quase em sépia. Naquele momento de introspecção ela se despediu de mim e partiu, deixando-me só, aspirando o aroma de verbena e alecrim que me era tão familiar. Sentei à beira da cama e comecei a refletir no que ela dissera. Meu filho, viria até mim, em busca de quê? De um pai somente? Porque Ela contou histórias sobre minha existencia? Éramos amigos porque tinhamos inimigos em comum.
Existe algo maior ai que preciso por em prática. Não falei com Harpócrates ou com Vermelho ou com meus irmãos, apenas terminei de me arrumar e sai para o trabalho: Estou no momento da minha Quarta Abdicação, ainda. Passei o dia com aquela sensação de que estava sendo seguido e de que meu corpo parecia estar querendo ser tomado, ignorei. Tomarei providências quando necessário for, por hora, apenas relato para que haja algo com o que trabalhar posteriormente.
É meu desejo continuar...
[1]Midríase - dilatação da pupila sob efeito da luz.